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El Salvador: Violações de direitos contra crianças e adolescentes durante o regime de exceção

Governo deveria pôr fim à tortura, às prisões arbitrárias e às condições desumanas de detenção

O quarto de Lucrecia Pérez (pseudônimo), então com 17 anos, na casa de sua tia, em 16 de dezembro de 2023, em um povoado rural de Sonsonate, El Salvador, onde está morando desde que sua mãe foi detida durante o estado de exceção. © 2023 Human Rights Watch
  • O regime de exceção de El Salvador, declarado em março de 2022, levou a graves violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes de comunidades em situação de pobreza.
  • Muitas crianças têm sido duplamente vitimadas, primeiro devido a abusos de gangues e depois pelas forças de segurança que as detiveram e maltrataram, com possíveis consequências para toda a vida.
  • O governo deveria pôr fim à sua abordagem abusiva e priorizar uma política que respeite direitos humanos e desmantele as gangues, previna o recrutamento de crianças e ofereça a elas proteção e oportunidades.

(San Salvador) - O regime de exceção de El Salvador, declarado em março de 2022, tem resultado em graves violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes de comunidades em situação de vulnerabilidade econômica, disse a Human Rights Watch em um relatório divulgado hoje.

O relatório de 107 páginas, “‘Your Child Does Not Exist Here’: Human Rights Abuses Against Children Under El Salvador’s ‘State of Emergency,’” (“‘Seu filho não existe aqui’: abusos de direitos humanos contra crianças e adolescentes sob o ‘regime de exceção’ de El Salvador”, em português), documenta detenções arbitrárias, tortura e outras formas de maus-tratos contra crianças e adolescentes durante a “guerra contra as gangues” (conhecidas como pandillas em El Salvador) do presidente Nayib Bukele. Crianças e adolescentes detidos frequentemente enfrentam superlotação, falta de alimentação e assistência médica adequadas, e não têm acesso a seus advogados e familiares. Em alguns casos, as crianças foram detidas com adultos nos primeiros dias da detenção. Muitas foram condenadas por acusações excessivamente amplas e em julgamentos injustos que violaram o devido processo legal.

“Crianças e adolescentes de comunidades vulneráveis em El Salvador estão sofrendo graves violações de direitos humanos devido as detenções indiscriminadas implementadas pelo governo”, disse Juanita Goebertus, diretora para as Américas da Human Rights Watch. “O governo deveria pôr fim à sua abordagem abusiva e priorizar uma política eficaz e que respeite os direitos humanos, que desmantele as gangues, que previna o recrutamento de crianças e as proporcione proteção e oportunidades.”

Desde o início do regime de exceção em março de 2022, policiais e soldados realizaram várias operações indiscriminadas, especialmente em bairros com vulnerabilidade econômica onde a violência d as gangues  era uma presença constante, prendendo mais de 80.000 pessoas, incluindo mais de 3.000 crianças e adolescentes. Durante décadas, a pobreza generalizada, a exclusão social e a falta de oportunidades educacionais e de trabalho deixaram poucos caminhos viáveis para as crianças e adolescentes, permitindo que as gangues os recrutassem e explorassem, e que as forças de segurança os estigmatizassem e perseguissem.

Entre junho de 2023 e julho de 2024, a Human Rights Watch entrevistou mais de 90 pessoas em El Salvador. Em setembro e dezembro de 2023, os pesquisadores visitaram comunidades em todo o país, realizando entrevistas e analisando documentos de casos relevantes, bem como registros médicos, educacionais e criminais. Entre os entrevistados estavam vítimas, seus familiares e advogados, bem como juízes, policiais, ex-funcionários do governo, professores, especialistas em segurança pública, jornalistas e representantes da sociedade civil.

As detenções indiscriminadas levaram um grande número de crianças e adolescentes à detenção, muitas vezes por períodos prolongados antes do julgamento, sem qualquer ligação aparente com violência ou atividades ilegais de gangues. Com frequência, as detenções parecem baseadas mais na aparência física e nas condições socioeconômicas do que em evidências concretas. Em alguns casos, as autoridades justificaram detenções com base em informações questionáveis, como denúncias anônimas não corroboradas. As forças de segurança comumente não apresentam mandados de busca e apreensão e raramente fornecem aos detidos ou às suas famílias motivos claros para uma detenção.

Em maio de 2022, soldados detiveram um estudante do ensino médio de 16 anos de Sensuntepeque, no estado de Cabañas, quando voltava para casa após uma partida de futebol. Um familiar disse à Human Rights Watch que os soldados o forçaram a se despir, queimaram seu torso com um isqueiro e ordenaram que ele confessasse ser integrante de uma gangue.

Os documentos do processo judicial mostram que ele foi acusado de associação ilegal, com base no testemunho de um informante anônimo, e condenado a seis anos de prisão, onde permanece em condições precárias de vida.

A repressão do governo tem sobrecarregado o já frágil sistema de justiça juvenil de El Salvador. Mais de 1.000 crianças e adolescentes foram condenados durante o regime de exceção, com sentenças de 2 a 12 anos de prisão, muitas vezes com base em acusações excessivamente amplas, como associação ilegal, e frequentemente com base em testemunhos policiais não corroborados. Em muitos casos, as autoridades coagiram crianças e adolescentes a confessarem, por meio de maus-tratos, inclusive tortura, ou por meio de acordos judiciais abusivos. 

Policiais e soldados prenderam uma estudante de 17 anos de uma cidade rural no estado de Sonsonate, em 1º de julho de 2022, sem apresentar um mandado. Em 9 de janeiro de 2023, um juiz pressionou a estudante e outras sete crianças a se declararem culpadas de colaborar com a gangue MS-13 em troca da redução da pena. Temendo sentenças mais longas, elas se declararam culpadas e foram condenadas a um ano de prisão.  “Não tínhamos opção”, disse ela. “Todos nós queríamos estar com nossas mães”.

As autoridades tomaram poucas ou nenhuma medida para proteger as crianças e adolescentes detidos da violência de outros detentos, inclusive espancamentos e violência sexual. Dezenas de crianças foram mantidas sem contato com suas famílias por semanas ou meses; muitas foram autorizadas a ver seus advogados apenas por alguns minutos antes das audiências.

Durante anos, os centros de detenção juvenil em El Salvador apresentam condições precárias: superlotação, falta de funcionários, insalubridade e falta de estrutura adequada. Esta situação tem gerado um ambiente perigoso e desumanizador que não apenas não prioriza o bem estar das crianças e adolescentes, mas também dificulta severamente qualquer possibilidade de reabilitação e reinserção.

Muitas crianças descreveram ter sido duplamente vitimados: primeiro, nas mãos de membros das gangues que abusaram delas e tentaram recrutá-las, e depois pelas forças de segurança que as detiveram arbitrariamente e as maltrataram. É provável que as experiências traumáticas de detenção tenham consequências significativas e duradouras.

A taxa de homicídios historicamente alta de El Salvador, que atingiu impressionantes106 por 100.000 habitantes em 2015, diminuiu drasticamente para uma baixa recorde de 2,4 homicídios por 100.000 habitantes em 2023, segundo números oficiais. A falta de transparência e os relatos de manipulação de dados dificultam a avaliação precisa da extensão da redução.

O governo de El Salvador deveria estabelecer um mecanismo para revisar os casos das pessoas detidas durante o regime de exceção, disse a Human Rights Watch. Este mecanismo deveria priorizar a revisão dos casos de crianças e adolescentes e outros detentos de grupos vulneráveis, com o objetivo de libertar todos os detidos sem provas e priorizar a investigação, respeitando o devido processo legal, dos altos líderes de gangues que são os maiores responsáveis por graves crimes.

As autoridades salvadorenhas também deveriam tomar medidas para estabelecer e implementar uma estratégia de segurança abrangente que proteja as crianças contra a violência e o recrutamento de  gangues, inclusive por meio de iniciativas de prevenção da violência, programas de reabilitação para crianças recrutadas e apoio à reintegração para aquelas em conflito com a lei. Quando a detenção for inevitável, ela deve ser pelo período mais curto e adequado, em instalações seguras, humanas e que conduzam à reintegração à sociedade.

Os governos estrangeiros deveriam abordar pública e privadamente suas preocupações sobre a situação dos direitos humanos em El Salvador, inclusive no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Os governos estrangeiros e as instituições financeiras internacionais, em particular o Banco Centroamericano de Integração Econômica (BCIE), deveriam suspender e abster-se de aprovar empréstimos que beneficiem órgãos salvadorenhos diretamente envolvidos em abusos, inclusive a Polícia Civil Nacional, as forças armadas, o sistema prisional e a Procuradoria Geral da República.

“A detenção indiscriminada de crianças e adolescentes ameaça perpetuar o ciclo de violência em El Salvador”, disse Goebertus. “A comunidade internacional deveria instar o governo a pôr fim às violações dos direitos humanos e proteger a vida e o futuro das crianças.”

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