- Um grande projeto de compensação de carbono no Camboja demonstra que essas iniciativas podem prejudicar povos indígenas quando sua participação efetiva e o consentimento não são garantidos.
- Estratégias de conservação que marginalizam e punem os povos indígenas para lidar com a crise climática global são inaceitáveis e contraproducentes.
- A organização Verra, que estabelece padrões neste mercado, permitiu que o projeto emitisse créditos de carbono, e deveria garantir compensação para os afetados. O governo do Camboja deveria titular os territórios indígenas Chongs e defender seus direitos.
(Bangkok) - Um grande projeto de compensação de carbono no Camboja mostra que essas iniciativas podem prejudicar as comunidades indígenas quando sua participação efetiva e seu consentimento não são garantidos, disse a Human Rights Watch em um relatório publicado hoje.
O relatório de 118 páginas, “Carbon Offsetting's Casualties: Violations of Chong Indigenous People's Rights in Cambodia's Southern Cardamom REDD+ Project” (“Vítimas da compensação de carbono: Violações dos direitos dos povos indígenas Chong no projeto REDD+ em Cardamomo do sul no Camboja”, em português), diz respeito a um projeto realizado pelo Ministério do Meio Ambiente do Camboja e pelo grupo conservacionista Wildlife Alliance, que abrange meio milhão de hectares nas montanhas de Cardamomo, uma área de floresta tropical que tem sido o lar do povo indígena Chong há séculos. O projeto funcionou por mais de dois anos sem consulta à comunidade Chong local, que enfrenta despejos forçados e denúncias de natureza criminal por cultivar e colher alimentos em seus territórios tradicionais.
“As estratégias de conservação que marginalizam e punem os povos indígenas para lidar com a crise climática global são inaceitáveis e contraproducentes”, disse Luciana Téllez Chávez, pesquisadora sênior de meio ambiente da Human Rights Watch. “O Projeto REDD+ de Cardamomo do Sul deveria ser revisto para garantir ao povo Chong a participação efetiva nas principais decisões, a titulação de terras comunais indígenas e acordos de compartilhamento de benefícios que reconheçam que os Chong são proprietários do carbono armazenado em seus territórios.”
A Human Rights Watch entrevistou, em um período de dois anos, mais de 90 pessoas em 23 das 29 aldeias incluídas no projeto, bem como 3 funcionários do governo. A Human Rights Watch também analisou imagens de satélite, mapas topográficos, artigos de imprensa e redes sociais. Desde setembro de 2022, a Human Rights Watch tem se reunido e se comunicado com o Ministério do Meio Ambiente, a Wildlife Alliance e outros atores privados importantes envolvidos no projeto.
O projeto REDD+ realizou atividades por 31 meses antes de começar a consultar as comunidades Chong em agosto de 2017. Durante esse período, o Ministério do Meio Ambiente e a Wildlife Alliance tomaram decisões cruciais sobre o gerenciamento da terra designada sem o consentimento livre, prévio e informado do povo indígena Chong. Eles incorporaram oito aldeias Chong em um parque nacional, minando seus direitos sobre suas terras tradicionais e florestas.
Os membros da comunidade Chong disseram que compartilhavam o objetivo de proteger a floresta tropical, mas queriam que o projeto REDD+ os tratasse como parceiros e que gostariam de liderar suas próprias atividades de conservação, independentemente da Wildlife Alliance.
“Eles [a Wildlife Alliance] não se preocupam com nossa identidade indígena”, disse um morador Chong da comuna de Chumnoab. “Eles nunca nos pediram permissão porque, do ponto de vista deles, já têm um acordo com o governo.”
As decisões do projeto que foram tomadas sem consultar as comunidades afetadas continuam a afetar os Chong, disse a Human Rights Watch. Dois indígenas Chong disseram que, em 2018 e 2021, patrulhas compostas por guardas florestais do Ministério do Meio Ambiente, gendarmes e funcionários da Wildlife Alliance os prenderam e maltrataram enquanto coletavam resina - uma atividade sustentável - na área de conservação.
“Quando eles entraram no acampamento pela primeira vez, me bateram nas costas com sua arma”, disse um indígena da comuna de O'Som. “Eles destruíram tudo o que eu tinha comigo, até as roupas que estavam em minhas costas.”
Seis famílias Chong descreveram terem sido despejadas à força pelos guardas florestais, gendarmes e pela equipe da Wildlife Alliance das terras que costumavam cultivar. As autoridades prenderam três membros da comunidade e os detiveram por meses sem julgamento após o despejo, de acordo com os documentos oficiais. “Não pedimos ajuda nem denunciamos depois que isso aconteceu”, disse um indígena da comuna de Pralay. “Somos apenas aldeões comuns, não nos atrevemos”.
A Verra, uma organização que certificou quase metade de todos os projetos do mercado voluntário global de carbono, credenciou o projeto REDD+ em 2018. As empresas multinacionais compram créditos de carbono para compensar sua poluição, uma prática conhecida como “compensação de carbono”. Em junho de 2023, após receber uma carta da Human Rights Watch com suas conclusões, a Verra parou de emitir créditos para o projeto e disse que faria uma revisão. A Verra se recusou a comentar sobre as conclusões da HRW enquanto sua revisão segue em andamento.
Várias das questões levantadas pelos residentes Chong foram repetidamente comunicadas às empresas de auditoria que apresentou suas avaliações à Verra entre 2018 e 2023. A primeira auditoria, apresentada em 2018, observou que a data de início do projeto era 1º de janeiro de 2015, mas as primeiras consultas às comunidades só começaram em agosto de 2017.
Outra auditoria, em 2021, observou que “várias comunidades relataram um alto número de pessoas que desconheciam o projeto REDD+” e “um elevado número dessas pessoas relata não saber sobre a definição de REDD+, sua implementação, como os benefícios e fundos de REDD+ serão compartilhados com a comunidade, [e] demarcação de limites entre REDD+ e suas terras agrícolas”.
O porta-voz do Ministério do Meio Ambiente escreveu para a Human Rights Watch que “a venda de créditos de carbono beneficiou as comunidades que estavam envolvidas na proteção e conservação dos recursos naturais”. A Wildlife Alliance escreveu que eles consultaram amplamente os moradores, que suas atividades constituem uma fiscalização ambiental legal, e que o projeto beneficia as comunidades locais. Afirmou que o projeto construiu poços, banheiros, uma estrada de laterita, duas escolas e um posto de saúde; concedeu bolsas de estudo universitárias a cinco jovens; forneceu treinamento agrícola a pequenos proprietários de terra; e operou duas iniciativas de ecoturismo que beneficiaram os residentes locais.
O projeto REDD+, no entanto, não tem um acordo de compartilhamento de benefícios com nenhuma das comunidades incluídas no projeto. Esses acordos são contratos juridicamente vinculantes que estabelecem a porcentagem dos ganhos do projeto que será desembolsada às comunidades. Acordos existentes regulam a distribuição de receitas entre a Wildlife Alliance, o Ministério do Meio Ambiente e o governo provincial de Koh Kong, de acordo com o site da Wildlife Alliance.
Apesar de manter sua discordância com as conclusões da Human Rights Watch, a Wildlife Alliance se comprometeu em novembro de 2023 a: “fornecer apoio técnico e financeiro” para a “titulação de terras de comunidades indígenas”; “estabelecer, treinar e apoiar uma equipe de patrulha comunitária indígena”; “fornecer treinamento formal em direitos humanos a todos os guardas florestais do governo cambojano e à equipe da Wildlife Alliance”; e desenvolver uma “política formal de direitos humanos”.
Esses compromissos, se cumpridos, podem ter um impacto positivo, mas a resposta da Wildlife Alliance até o momento não foi suficiente para reconhecer e remediar os impactos de direitos humanos causados pelo projeto. A Wildlife Alliance deveria criar um plano de remediação abrangente em consulta com as comunidades afetadas para compensar quaisquer vítimas de despejos forçados, detenções arbitrárias e prisões injustas. A Wildlife Alliance também deveria responsabilizar todos os funcionários do projeto envolvidos em abusos.
A Verra deveria condicionar o restabelecimento do projeto a uma reparação abrangente para os indivíduos e comunidades adversamente afetados pelo mesmo, incluindo compensação monetária e um novo processo de consulta que permita a comunidade Chong revisitar a concepção, os limites, as atividades e a implementação do projeto REDD+, bem como os acordos de compartilhamento de benefícios. O governo do Camboja deveria fornecer os títulos dos territórios tradicionais dos indígenas Chong e reconhecer que os povos indígenas são proprietários do carbono armazenado em suas terras.
“A inação da Verra diante dos vários sinais de alerta durante anos coloca seriamente em questão seus mecanismos de supervisão e responsabilidade”, disse Luciana Téllez Chávez. “Essas conclusões levantam preocupações sobre se outros projetos de compensação de carbono ao redor do mundo aprovados pela Verra estão causando danos às próprias comunidades que mais dependem das florestas para sua subsistência.”