Sumário
Estendendo-se por quase metade do território brasileiro e abrangendo nove de seus estados, a região amazônica é o lar de mais de 20 milhões de brasileiros. Desde 1985 – quando o governo começou a monitorar o desmatamento na Amazônia –, mais de meio milhão de quilômetros quadrados foram destruídos. Esse desmatamento geralmente resulta em queimadas, iniciadas por pessoas que ateiam fogo na vegetação remanescente, frequentemente ilegalmente, depois de terem removido as árvores de maior valor. Embora essas queimadas ocorram ao longo do ano na Amazônia a fim de preparar áreas para agricultura, pecuária ou especulação de terras, elas geralmente atingem seu pico durante a estação seca, entre os meses de julho e outubro. Essas queimadas produzem poluição atmosférica que representa um grave risco para a saúde. Crianças, pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças pulmonares ou cardíacas preexistentes são especialmente vulneráveis.
Este relatório, realizado em parceria entre o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e a Human Rights Watch, avalia o impacto que as queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia brasileira tiveram sobre a saúde em 2019. O IPAM conduziu uma análise do desmatamento e das tendências das queimadas no ano com base em dados oficiais. O IEPS conduziu uma análise estatística dos impactos destas queimadas na saúde com base em dados oficiais sobre poluição do ar e internações hospitalares por doenças respiratórias (o estudo estatístico está disponível aqui. A Human Rights Watch conduziu entrevistas com autoridades e profissionais da área da saúde e outros atores relevantes em cinco estados da Amazônia brasileira, e também revisou documentos e políticas públicas.
As conclusões deste relatório indicam que as queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia tiveram um impacto negativo significativo na saúde pública na região em 2019. Isso incluiu 2.195 internações devido a doenças respiratórias atribuíveis às queimadas, de acordo com a análise estatística realizada pelo IEPS em parceria com IPAM e Human Rights Watch. Destas internações, 467 (21 por cento) foram de bebês de 0 a 12 meses de idade e 1.080 (49 por cento) foram de pessoas idosas, com 60 anos ou mais. O estudo descobriu que os pacientes passaram um total de 6.698 dias no hospital em 2019 em razão da exposição à poluição do ar decorrente das queimadas.
O impacto total das queimadas na saúde se estendeu muito além desses casos. Muitas pessoas na Amazônia têm acesso limitado a serviços de saúde, de modo que o impacto pode não estar representado pelos dados relativos a internações. Os dados disponíveis também excluem serviços privados de saúde, embora um quarto dos brasileiros possua planos de saúde privados e tendam a buscar atendimento nesses estabelecimentos. Também não incluem o número muito maior de pessoas cujos problemas respiratórios, embora sérios, não exigiram internação.
A falta de outros dados confiáveis de saúde, com exceção de internações, impossibilita estimar com precisão o número total de pessoas cuja saúde foi prejudicada pela fumaça das queimadas. Contudo, os dados oficiais sobre a qualidade do ar nos permitem pelo menos quantificar quantas pessoas foram expostas à fumaça tóxica. Em agosto de 2019, cerca de três milhões de pessoas, residentes em 90 municípios da região amazônica, foram expostas a níveis nocivos de material particulado fino – conhecido como PM 2,5 – que ultrapassaram o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para proteger a saúde. O número aumentou para 4,5 milhões de pessoas expostas em 168 municípios em setembro. Esse poluente está fortemente relacionado à ocorrência de queimadas na Amazônia e tem sido associado a doenças respiratórias e cardiovasculares, além de mortes prematuras.
O impacto das queimadas na saúde pública é intensificado para povos indígenas na Amazônia. A destruição do meio ambiente afeta sua saúde e também sua subsistência. O desmatamento e as queimadas subsequentes frequentemente ocorrem nos territórios indígenas ou em seu entorno, às vezes destruindo plantações e afetando o acesso a alimentos, plantas medicinais e caça.
Diversos fatores indicam que as queimadas na Amazônia em 2020 podem ser ainda mais intensas do que em 2019. O desmatamento no primeiro semestre de 2020 aumentou 25 por cento em relação ao mesmo período no ano passado. Em abril de 2020, as áreas desmatadas e não queimadas em 2019 somadas às recém-desmatadas já totalizavam 4.509 na Amazônia que poderiam ser queimados durante esta estação seca, ou seja, aproximadamente o tamanho de 451.000 campos de futebol (a área queimada total em 2019 foi de 5.500 ). Junho de 2020 registrou quase 20 por cento mais focos de calor que junho de 2019, e julho teve um aumento de 28 por cento em relação ao mesmo mês do ano anterior. As previsões meteorológicas indicam a incidência de seca em grande parte da região, o que agravaria as queimadas. Autoridades ambientais estão enfrentando dificuldades logísticas no treinamento e o emprego de agentes para o combate das queimadas em meio à pandemia de Covid-19.
Além disso, o impacto das queimadas na saúde pode ser pior em 2020 devido ao novo coronavírus. Autoridades, profissionais da saúde e especialistas temem que os hospitais, sobrecarregados com a pandemia de Covid-19, tenham dificuldade para atender pacientes afetados pelas queimadas, potencialmente causando o colapso do sistema de saúde em partes da região amazônica. Pessoas com doenças respiratórias devido a queimadas ainda correm o risco adicional de contrair o vírus quando percorrem longas distâncias para ter acesso a cuidados de alta complexidade, como muitas vezes precisam fazer os que residem na Amazônia. Além disso, a fumaça pode agravar os sintomas do vírus, resultando em casos mais graves, e pode aumentar os óbitos relacionadas à Covid-19.
Mesmo que as previsões mais pessimistas para 2020 não se concretizem, os impactos das queimadas na saúde continuarão um problema grave enquanto o desmatamento permanecer da forma que atualmente se encontra.
O Brasil deveria fazer mais para enfrentar esta crise crônica e evitável de saúde pública, inclusive com medidas para prevenir as queimadas e mitigar seu impacto na saúde, em consonância com as obrigações internacionais que o Brasil assumiu de proteger os direitos à saúde e a um meio ambiente saudável. As autoridades deveriam implementar um sistema de monitoramento da qualidade do ar eficaz, e fazer cumprir padrões de qualidade do ar que protejam a saúde por meio de ações preventivas e reativas.
Mais importante ainda, o governo brasileiro deveria enfrentar a origem do problema, cumprindo seus compromissos de reduzir o desmatamento na Amazônia. Nos termos do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima, o Brasil se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030. Sob sua própria Política Nacional sobre Mudanças do Clima, o Brasil se comprometeu a reduzir o desmatamento na Amazônia para menos de 3.925 por ano até 2020. No entanto, mesmo com a estimativa oficial mais conservadora, 4.700 já foram desmatados até o final de julho deste ano. Essa área não somente ultrapassa consideravelmente o limite que o Brasil incluiu em seus compromissos climáticos para o ano de 2020, como ainda ultrapassa a área desmatada no mesmo período de 2019.
A destruição da Amazônia brasileira tem consequências que se estendem muito além do Brasil. As florestas atuam como áreas de armazenamento natural de carbono, absorvendo ao longo do tempo o dióxido de carbono da atmosfera, um dos principais gases do efeito estufa que impulsiona as mudanças climáticas. A Amazônia desempenha um papel excepcional contra as mudanças climáticas nesse aspecto, armazenando aproximadamente 100 bilhões de toneladas de carbono – uma quantidade equivalente a dez anos de emissão global de gases de efeito estufa – e removendo cerca de 600 milhões de toneladas por ano da atmosfera. Mas o desmatamento e as queimadas têm o efeito oposto: conforme a floresta é derrubada e incendiada, ela libera grandes quantidades de dióxido de carbono na atmosfera.
Desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o cargo em janeiro de 2019, o governo enfraqueceu a capacidade de o Brasil cumprir seus compromissos de acabar com o desmatamento ilegal e reduzir o desmatamento em geral. Sua administração tem debilitado as agências ambientais do país, prejudicando de forma dramática a aplicação das leis que protegem a floresta.
Em resposta a crescentes críticas, no país e no exterior, o governo enviou as Forças Armadas repetidamente para conter o fogo na Amazônia. Embora essas operações possam ter apresentado efeito dissuasivo no curto prazo, elas não resolveram a raiz do problema, conforme o aumento contínuo do desmatamento e queimadas durante o primeiro semestre de 2020 evidencia.
Mais desmatamento significa mais áreas esperando para serem queimadas. Até que o Brasil efetivamente freie o desmatamento, as queimadas devem retornar a cada ano, completando a destruição da floresta tropical e intoxicando o ar que milhões de brasileiros respiram.
Metodologia
Este relatório é uma colaboração entre o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e a Human Rights Watch.
O IEPS conduziu um estudo estatístico que estima o número de internações hospitalares em excesso relacionadas a queimadas associadas ao desmatamento. O IPAM analisou os dados oficiais de desmatamento e queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A Human Rights Watch conduziu entrevistas e analisou políticas públicas relevantes sobre saúde e meio ambiente, sob a perspectiva dos direitos humanos.
O estudo estatístico estima o impacto da poluição do ar decorrente das queimadas associadas ao desmatamento no bioma Amazônia brasileiro no sistema de saúde em 2019. O bioma compreende a área geográfica sobre a qual se estende a floresta tropical, envolvendo nove estados do Brasil: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e partes do Maranhão, Mato Grosso e Tocantins. O estudo consistiu na construção de um modelo estatístico com base em dados oficiais de internações por doenças respiratórias e de queimadas, desmatamento e poluição do ar. Utilizou-se medições de material particulado de diâmetro inferior a 2,5 micrometros (PM 2,5) como indicador de poluição atmosférica, dado que os níveis de PM 2,5 na região amazônica estão fortemente correlacionados com a ocorrência de queimadas e que as graves consequências para a saúde deste contaminante estão bem estabelecidas na literatura sobre saúde pública. A análise estatística controlou três variáveis meteorológicas (precipitação média, a temperatura média e a umidade média) e tendências municipais (que consideram tendências específicas que podem estar relacionadas a políticas públicas desenvolvidas no município) que também podem afetar a saúde respiratória, a fim de tentar isolar especificamente o impacto da poluição atmosférica decorrente das queimadas associadas ao desmatamento. O estudo estatístico com sua metodologia completa está disponível aqui.
O estudo sobre desmatamento e queimadas incluiu uma análise dos focos de calor mensais e áreas desmatadas por município para os anos de 2016 a 2019. Os detalhes da descrição e tratamento dos dados estão disponíveis em: Alencar, A., Moutinho, P., Arruda, V., e Silvério, D. “Amazônia em chamas: o fogo e o desmatamento em 2019 e o que vem em 2020,” Nota Técnica n° 3, IPAM, abril de 2020. A metodologia e os dados utilizados para a estimativa da área desmatada e não queimada em 2019 e 2020 estão disponíveis em: Moutinho, P.; Alencar, A.; Arruda, V.; Castro,I.; e Artaxo, P., “Amazônia em chamas: desmatamento e fogo em tempos de Covid-19,” Nota Técnica n° 4, IPAM, junho 2020.
A fonte dos dados sobre desmatamento e focos de calor foi o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); os dados de poluição do ar foram obtidos através do Sistema de Informações Ambientais Integrado à Saúde Ambiental (SISAM), uma plataforma do INPE, Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), entre outros; e a fonte dos dados sobre internações hospitalares foi o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, o DATASUS. (O estudo completo com uma explicação detalhada da metodologia pode ser acessado aqui.)
As conclusões deste relatório também se baseiam em entrevistas com 67 pessoas, incluindo com autoridades e servidores públicos da saúde nas esferas federal, estadual e municipal; promotores públicos e procuradores federais; profissionais da saúde; membros de associações médicas; acadêmicos especializados em saúde, meio ambiente e clima; representantes de organizações da sociedade civil; e líderes indígenas de comunidades afetadas pela fumaça das queimadas associadas com o desmatamento.
A Human Rights Watch não conduziu entrevistas pessoalmente para este relatório devido às restrições de viagens e nosso dever de prevenir a disseminação da Covid-19. As entrevistas foram realizadas por telefone ou plataformas on-line seguras entre janeiro e julho de 2020. A maioria das entrevistas foi conduzida em português. Devido a tais restrições, conduzimos um número limitado de entrevistas com pessoas que tiveram sua saúde afetada pela fumaça das queimadas associadas ao desmatamento.
Em junho de 2020, a Human Rights Watch enviou pedidos de acesso à informação a autoridades federais e estaduais. Na esfera federal, a Human Rights Watch contatou o Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Na esfera estadual, foram encaminhados pedidos de acesso à informação às secretarias estaduais de saúde dos estados do Amazonas, Mato Grosso, Pará e Rondônia, visto que mais de 80 por cento dos incêndios em todo o bioma Amazônia em 2019 concentraram-se nesses quatro estados dentre os nove que fazem parte da região amazônica, de acordo com dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Até 3 de agosto de 2020, os estados do Pará e Rondônia, bem como o Ministério do Meio Ambiente e o IBAMA haviam respondido.
Informamos a todos os participantes o propósito das entrevistas e como as informações coletadas seriam utilizadas. Eles consentiram oralmente. Nenhum entrevistado recebeu compensação pelo fornecimento de informações.
I. Desmatamento, Queimadas e Mudanças Climáticas
Desmatamento
Desde 1985 – quando o Brasil passou a monitorar o desmatamento na Amazônia –, mais de meio milhão de quilômetros quadrados da floresta foram destruídos para a ocupação de terras, extração de madeira, pastagens, cultivos agrícolas, desmatamento para mineração, entre outros[1]. Entre 2004 e 2012, o Brasil reduziu a taxa de desmatamento na Amazônia em 83 por cento[2]. Algumas medidas contribuíram para esse sucesso, como a aplicação efetiva das leis ambientais nacionais, a criação de grandes áreas protegidas, a introdução de compromissos nas cadeias produtivas da soja e da carne bovina, restrições de acesso a crédito para produtores rurais sem a titularidade legal da terra ou que não cumpriram os regulamentos ambientais, além do uso de imagens de satélite em tempo real para localizar extração ilegal de madeira[3]. Mas, depois de 2012, após uma série de medidas equivocadas e cortes no orçamento das agências de fiscalização ambiental, a taxa de desmatamento começou a subir novamente[4].
Um aumento dramático ocorreu em 2019, durante o primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, quando o desmatamento cresceu 85 por cento, de acordo com alertas do Sistema de Detecção do Desmatamentos em Tempo Real (DETER), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)[5]. Entre janeiro e dezembro de 2019, um total de 9.174 quilômetros quadrados foram desmatados, em comparação com 4.951 no mesmo período em 2018[6]. O desmatamento da floresta continuou em ritmo acelerado em 2020, com 4.730 quilômetros quadrados já desmatados na Amazônia entre janeiro e julho de 2020, frente aos 4.701 desmatados entre janeiro e julho de 2019[7].
Queimadas
As queimadas não ocorrem de forma natural no ecossistema úmido da bacia amazônica. Na realidade, elas são iniciadas por pessoas que concluem o processo de desmatamento, quando as árvores mais valiosas já foram removidas, frequentemente de forma ilegal. O fogo também pode se espalhar das áreas recém-desmatadas e de pastagens antigas para áreas de floresta. Os incêndios florestais, provocados por ignição natural como um raio, são extremamente raros na floresta tropical e estima-se que ocorram apenas a cada 500 anos ou mais[8].
Pessoas iniciam queimadas ao longo do ano na Amazônia brasileira para preparar o terreno para plantações, pastagem de gado, especulação de terras, entre outros. Geralmente esperam a estação seca para queimar a maior parte da vegetação morta, entre julho e outubro, com os focos de fogo atingindo o pico geralmente em setembro[9]. Existem três variáveis principais que podem amplificar a extensão e intensidade das queimadas na região amazônica:
- Fontes de ignição: as queimadas são esmagadoramente provocadas de forma intencional por pessoas, sendo as queimadas ilegais possibilitadas por uma fiscalização ambiental ineficaz.
- Material combustível: a vegetação morta do desmatamento, deixada para secar no solo da floresta, serve de combustível para queimadas, sendo o aumento do desmatamento ilegal também consequência de uma fiscalização ambiental ineficaz.
- Condições climáticas: o tempo excepcionalmente quente e seco na floresta tropical pode permitir que o fogo se espalhe rapidamente, ampliando seu potencial destrutivo durante os anos de seca[10].
Figura 1. O "Triângulo do Fogo Amazônico"[11]
No entanto, 2019 não foi um ano excepcionalmente quente ou seco para a Amazônia, o que descarta as condições climáticas como um fator determinante das queimadas na região naquele ano[12].
As queimadas em 2019 foram impulsionadas pelo aumento dramático do desmatamento, provocado, em parte, pela falha das autoridades em fazer cumprir suas próprias leis ambientais, o que evitaria o desmatamento ilegal da floresta e restringiria o uso do fogo nessas áreas recém-desmatadas. As queimadas diminuíram em setembro de 2019, depois que o governo federal editou dois decretos de controle do fogo no final de agosto e enviou as Forças Armadas para operações de fiscalização ambiental[13]. As queimadas continuaram em queda até o final do ano, facilitada pelas chuvas sazonais dos meses subsequentes, mas as áreas desmatadas continuaram em ascensão. Mesmo assim, até o final do ano, 55 por cento da área desmatada em 2019 havia sido queimada, o equivalente a mais de 5.500 quilômetros quadrados da Amazônia brasileira[14].
Durante o primeiro semestre de 2020, o desmatamento continuou subindo em relação a 2019. Em abril de 2020, a área recém-desmatada combinada com os 45 por cento da área desmatada, mas não queimada em 2019, já totalizava 4.509 quilômetros quadrados na Amazônia que poderiam ser queimados durante a estação seca deste ano[15].
O fogo aumentou nos meses que antecederam a estação seca de 2020. Somente junho de 2020 registrou quase 20 por cento mais focos de calor em relação a junho de 2019, enquanto julho de 2020 teve um aumento de 28 por cento em relação a julho de 2019[16]. Uma análise recente do IPAM mostra que a maioria dos estados com altas taxas de desmatamento (Pará, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia) teve ainda mais queimadas no primeiro semestre de 2020 em comparação com o mesmo período de 2019[17].
Devido ao grande acúmulo de terras desmatadas, mas não queimadas – resultado do aumento dramático do desmatamento – e de intensos focos de fogo na região na aproximação dos meses mais secos, cientistas têm demonstrado preocupação de que as queimadas de 2020 podem ser significativamente piores do que 2019. “Sem a contenção imediata do desmatamento”, escreveram cientistas ligados a instituições públicas brasileiras em maio, “as queimadas proliferarão, com ou sem um clima mais seco”[18].
Uma análise do início de julho por cientistas da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA) dos Estados Unidos e da Universidade da Califórnia sugere, no entanto, que o clima também terá um fator amplificador este ano, juntamente com as dificuldades logísticas no combate às queimadas, decorrentes da pandemia. “Você tem uma tempestade perfeita: seca, o recente aumento no desmatamento e novas dificuldades para combate aos incêndios”, disse Doug Morton, chefe do Laboratório de Ciências Biosféricas do Centro de Voos Espaciais Goddard da NASA e co-criador da previsão de temporada de incêndios na Amazônia na agência[19].
Autoridades ambientais na Amazônia ecoam a terrível previsão de Morton. “A expectativa era reduzir este ano [em comparação com 2019], mas este ano vai ser assustador”, disse o coronel Paulo André da Silva Barroso, Secretário Executivo do Comitê do Fogo do Mato Grosso, à Human Rights Watch em junho. O comitê presidido por Barroso é uma coordenação interinstitucional que reúne órgãos estaduais e federais para combater incêndios a cada ano. Barroso disse à Human Rights Watch que as medidas de precaução necessárias para conter a pandemia de Covid-19 prejudicaram suas atividades usuais de prevenção e preparação, incluindo a formação de brigadistas em campo. “Desafio é tão enorme”, acrescentou Barroso[20].
Figura 2. Desmatamento e focos de calor no bioma Amazônia no Brasil, 2019[21]
Mudanças Climáticas
Nos termos do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima, o Brasil se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030[22]. Sob sua própria Política Nacional sobre Mudanças do Clima, o Brasil se comprometeu a reduzir o desmatamento na Amazônia para menos de 3.925 por ano até 2020[23]. No entanto, mesmo considerando a estimativa oficial mais conservadora, 4.700 já haviam sido desmatados até o final de julho deste ano. Essa área não só ultrapassa consideravelmente o limite que o Brasil incluiu em seus compromissos climáticos para todo o ano de 2020, como também é maior do que a área desmatada no mesmo período de 2019[24].
A destruição da Amazônia brasileira tem consequências que vão muito além do Brasil. As florestas atuam como áreas de armazenamento natural de carbono, absorvendo-o e armazenando-o ao longo do tempo. Quando uma floresta queima, ela pode liberar centenas de anos desse carbono armazenado na forma de dióxido de carbono, um dos principais gases do efeito estufa que impulsiona as mudanças climáticas, na atmosfera em questão de horas[25]. A Amazônia desempenha papel excepcional contra as mudanças climáticas nesse aspecto, armazenando aproximadamente 100 bilhões de toneladas de carbono – uma quantidade equivalente a dez anos de emissão global de gases de efeito estufa, tendo 2018 como ano de referência – e removendo cerca de 600 milhões de toneladas por ano da atmosfera[26].
No Brasil, a principal fonte de emissão de gases de efeito estufa é a mudança no uso da terra – por exemplo, quando a floresta é destruída e a área é reaproveitada para pastagem –, o que representou 44 por cento das emissões em 2018, último ano com dados disponíveis[27]. Um grupo de pesquisadores, incluindo cientistas do IPAM, estimou recentemente que devido à “franca expansão” do desmatamento na Amazônia, é provável que as emissões do país aumentem em 2020 entre 10 e 20 por cento em relação a 2018[28].
Cientistas alertam que o fracasso do governo em conter o ritmo acelerado de perda florestal pode fazer com que a Amazônia atinja um 'ponto de inflexão', quando a vegetação pode ser substituída por um tipo mais próximo de uma savana, liberando enormes quantidades de gases de efeito estufa na atmosfera, com consequências catastróficas para a economia brasileira e para os esforços globais de mitigação das mudanças climáticas[29].
II. Impactos das queimadas associadas ao desmatamento da Amazônia brasileira na saúde
Dados sobre o impacto das queimadas na saúde
As queimadas produzem uma mistura de poluentes tóxicos que podem permanecer no ar por semanas. Estes poluentes incluem monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio, carbono negro, carbono marrom e precursores de ozônio, entre outros. A principal ameaça à saúde pública, entretanto, é o material particulado menor que 2,5 micrômetros de diâmetro, conhecido como PM 2,5 – um dos principais componentes da fumaça. Quando inalado, o PM 2,5 penetra facilmente no pulmão e entra na corrente sanguínea, permanecendo no corpo por meses após a exposição[30].
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a exposição à fumaça e cinzas produzidas pelas queimadas pode causar:
- irritação nos olhos, nariz, garganta e pulmões;
- redução da função pulmonar, incluindo tosse e sibilo;
- inflamação pulmonar, bronquite, agravamento de asma e outras doenças pulmonares; e
- exacerbação de doenças cardiovasculares, como insuficiência cardíaca.[31]
Crianças, pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças respiratórias ou cardíacas preexistentes são mais suscetíveis aos efeitos na saúde associados às queimadas[32]. Crianças pequenas são particularmente vulneráveis porque seus sistemas imunológico e respiratório ainda estão em desenvolvimento, enquanto pessoas idosas podem ser mais vulneráveis porque seus sistemas imunológico e respiratório podem estar comprometidos[33].
Em longo prazo, a exposição à poluição do ar também tem sido associada a doenças crônicas e morte prematura. Em todo o mundo, a poluição do ar devido à queima de florestas e outras vegetações pode causar até 435.000 mortes prematuras a cada ano[34].
Para ilustrar como as queimadas influenciam a qualidade do ar na região, produzimos mapas da poluição do ar do bioma Amazônia no Brasil para agosto e setembro de 2019, quando ocorreu o pico de focos de fogo do ano passado. Os mapas apresentam estimativas das concentrações médias mensais de PM 2,5 a nível municipal, produzidas pelo Sistema de Informações Ambientais integrado à Saúde Ambiental (SISAM), com base na análise de imagens de satélite. O SISAM é uma plataforma do INPE em parceria com o Ministério da Saúde, e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), entre outros[35].
Figura 3. Concentrações de PM 2,5 no bioma Amazônia no Brasil em agosto de 2019[36].
Figura 4. Concentrações de PM 2,5 no bioma Amazônia no Brasil
em setembro de 2019[37].
Internações atribuíveis a queimadas associadas ao desmatamento em 2019
O IEPS, em parceria com o IPAM e a Human Rights Watch, conduziu um estudo estatístico para estimar o impacto da poluição do ar por queimadas associadas ao desmatamento na saúde na Amazônia brasileira em 2019[38]. O estudo envolveu a construção de um modelo estatístico baseado em dados oficiais de internações hospitalares por doenças respiratórias e sobre queimadas, desmatamento e poluição do ar[39].
O estudo baseou-se em medições de PM 2,5 como indicativo de poluição do ar, visto que os níveis de PM 2,5 na região amazônica estão fortemente correlacionados com a ocorrência de queimadas e que as graves consequências para a saúde desse contaminante estão bem estabelecidas na literatura de saúde pública[40].
A análise estatística controlou três variáveis meteorológicas (precipitação média, a temperatura média e a umidade média) e tendências municipais (relacionadas a tendências específicas que podem ser resultado de políticas públicas desenvolvidas no município) que também podem afetar a saúde respiratória, a fim de tentar isolar especificamente o impacto da poluição atmosférica das queimadas associadas ao desmatamento[41].
O estudo estimou que, em 2019, houve 2.195 internações devido a doenças respiratórias atribuíveis a queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia brasileira. Setenta por cento das internações envolveram bebês ou pessoas idosas: 467 foram de bebês de 0 a 12 meses; 1.080 foram de pessoas com 60 anos de idade ou mais. As 2.195 internações resultaram em um total de 6.698 dias no hospital para os pacientes[42].
As internações atribuíveis às queimadas foram menores entre janeiro e julho, meses com menos queimadas na Amazônia, variando entre 100 e 150 por mês. Com a intensificação das atividades de fogo na segunda metade do ano, as internações atribuíveis à fumaça das queimadas aumentaram 65 por cento entre julho e agosto, variando entre 230 e 290 por mês até o final do ano. As internações continuaram altas após outubro e até o final do ano, possivelmente devido à permanência de poluentes no ar, bem como nos pulmões e na corrente sanguínea de pessoas que já haviam inalado a fumaça.
Figura 5. Internações devido a doenças respiratórias atribuíveis às queimadas associadas ao desmatamento no bioma Amazônia no Brasil, 2019
Essas internações representam somente uma parte do impacto geral das queimadas associadas ao desmatamento sobre a saúde na Amazônia em 2019. O número total de internações decorrentes das queimadas pode ser maior, visto que os dados utilizados no estudo incluem apenas aqueles notificados por estabelecimentos que fazem parte do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados não incluem internações em instituições privadas não custeadas pelo SUS, onde pacientes também podem ter procurado atendimento devido a doenças respiratórias associadas à fumaça das queimadas. Vinte e quatro por cento dos brasileiros possuem plano de saúde privados e tendem a procurar serviços privados[43].
É provável também que um número significativo de pessoas, cujo estado de saúde poderia justificar uma internação, nunca tenha procurado ou não tenha conseguido obter atendimento em estabelecimentos de saúde. A infraestrutura de saúde na região amazônica é altamente concentrada em algumas grandes cidades. Muitos residentes de comunidades rurais e pequenos municípios precisam viajar longas distâncias para chegar aos estabelecimentos médicos que oferecem cuidados de alta complexidade, incluindo internações[44]. Em média, o acesso a essas instalações exige que as pessoas percorram entre 370 e 471 quilômetros nos estados amazônicos do Amazonas, Mato Grosso e Roraima, de acordo com um estudo recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto a média nacional é de 155 quilômetros.[45]
Para alguns, o deslocamento entre suas casas e o hospital mais próximo pode exigir viagens por rio ou estradas de terra que podem levar dias. Essas distâncias dificultam o acesso de pessoas afetadas pelas queimadas associadas ao desmatamento à assistência médica necessária, de acordo com autoridades e especialistas em saúde pública da região amazônica, entrevistados pela Human Rights Watch[46].
O acesso de povos indígenas aos cuidados de saúde às vezes é ainda mais restrito, ficando abaixo da média da região amazônica. Em dez por cento das aldeias indígenas do interior da Amazônia, as pessoas precisam viajar entre 700 e 1.079 quilômetros para chegar a um hospital público com leito em uma unidade de terapia intensiva, de acordo com um estudo que cruzou dados do Ministério da Saúde e as localidades das aldeias registradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI)[47].
Além disso, para cada caso que resultou em internação, é provável que houve um número significativamente maior de casos em que a saúde da pessoa foi seriamente afetada, mas não exigiu internação. Devido à falta de dados oficiais confiáveis sobre atendimentos ambulatoriais no Brasil, o estudo examinou apenas internações[48]. De acordo com a OMS, os efeitos das queimadas na saúde resultarão em internações para uma parcela relativamente pequena das pessoas cuja saúde é afetada de forma adversa[49]. O gráfico da OMS abaixo ilustra a distribuição típica dos impactos na saúde causados pelas queimadas:
Figura 6: Efeitos da Fumaça da Queima de Biomassa na Saúde, segundo a OMS[50]
Por fim, o presente estudo analisou apenas os efeitos de curto prazo das queimadas à saúde e restringiu-se ao bioma Amazônia, onde tais queimadas ocorreram. Outros estudos de longo prazo que avaliam o impacto na saúde de queimadas associadas ao desmatamento na Amazônia brasileira concluíram que a qualidade do ar é afetada negativamente em toda a América do Sul, resultando em milhares de mortes prematuras[51].
Depoimentos sobre os impactos das queimadas associadas ao desmatamento na saúde
Em parceria com o IPAM e o IEPS, a Human Rights Watch conduziu um total de 67 entrevistas, incluindo 52 com autoridades e servidores públicos da saúde nas esferas federal, estadual e municipal; profissionais da saúde; membros de associações médicas; acadêmicos especializados em saúde, meio ambiente e clima; representantes de organizações da sociedade civil; e líderes indígenas de comunidades afetadas pela fumaça das queimadas associadas com o desmatamento.
A maioria dos entrevistados residia e trabalhava nos estados do Acre, Amazonas, Mato Grosso, Pará e Rondônia.[52] Esses estados tiveram a pior qualidade do ar na região amazônica durante os meses de pico das queimadas em 2019, com dezenas de municípios registrando de duas a cinco vezes o valor máximo de PM 2,5 definido pelas diretrizes da OMS para proteção da saúde[53].
Os relatos dos entrevistados pela Human Rights Watch corroboram as conclusões de nosso estudo estatístico, de que pessoas na região amazônica sofrem com doenças respiratórias durante os meses de aumento das queimadas, com crianças e pessoas idosas sendo desproporcionalmente impactadas. Eles também reafirmaram nosso entendimento de que as internações representam apenas uma pequena parcela dos impactos à saúde associados às queimadas.
Os entrevistados descreveram como pessoas que sofrem com doenças respiratórias não conseguem ter acesso a cuidados médicos adequados devido à infraestrutura de saúde limitada na região amazônica. Eles também se mostraram preocupados de que os efeitos na saúde associados às queimadas deste ano podem agravar de forma preocupante a pandemia de Covid-19 e potencialmente levar o sistema de saúde ao colapso em partes da Amazônia.
Acre
Em Rio Branco, capital do Acre, um médico local descreveu a poluição do ar durante a temporada de queimadas como “insuportável”. Ele pratica medicina no estado há 20 anos e disse que a cada ano o número de visitas ao hospital – principalmente de crianças e pessoas idosas – “aumenta sensivelmente” à medida que as queimadas se intensificam[54].
Outro médico, que trabalha no Hospital Geral Santa Juliana, em Rio Branco, disse que a poluição do ar foi especialmente “intensa” durante a temporada de queimadas de 2019. “Tive que hospitalizar muitos pacientes com doenças crônicas, especialmente doença pulmonar obstrutiva crônica e insuficiência cardíaca”, o que ele atribuiu ao impacto da poluição causada pelas queimadas. Depois de tratar pacientes cuja condição se desenvolveu ou piorou durante episódios de piora crítica da qualidade do ar durante a temporada de queimadas, ele disse que aconselhou os pacientes a não deixarem suas casas, mas lamentou que as autoridades estaduais não emitissem tais alertas de saúde para a população em geral[55].
Em Feijó, uma cidade de 34.000 habitantes, 360 quilômetros a noroeste de Rio Branco, no centro do Acre, o secretário municipal de saúde disse à Human Rights Watch: “Nosso município sofre muito com queimadas nos meses de julho a agosto”[56]. Todos os anos, nesses meses, há um aumento na procura dos serviços de saúde devido a problemas respiratórios, afirmou.
Em Sena Madureira, uma cidade de 45.000 habitantes entre Feijó e Rio Branco, a secretária municipal de saúde disse que o impacto da fumaça durante a temporada de queimadas sobrecarrega consideravelmente as unidades de saúde, que atendem pacientes que viajam por até três dias para procurar cuidados[57]. “As unidades lotam mais. O município é pequeno, não temos estrutura para grandes quantidades de pessoas com crises agudas. Não tem respiradores, UTI.”
Quando entrevistada em meados de junho, a secretária de saúde de Sena Madureira disse temer que este ano o impacto seja “pior com a Covid-19 porque as queimadas pioram os sintomas respiratórios”. Ela disse ter “preocupação com o colapso do sistema de saúde”[58]. O secretário de saúde em Feijó expressou o mesmo receio: “Estamos muito preocupados, porque estamos entrando nos meses de aumento das queimadas. Associado ao problema da Covid-19, podemos entrar em colapso geral [do sistema
de saúde]”[59].
Amazonas
Em Lábrea, município no sul do estado do Amazonas, o secretário municipal de saúde disse que a fumaça das queimadas tem um impacto dramático na qualidade do ar a cada ano. “Eu mesmo sofro muito, quase não consigo falar, fico com a garganta e olhos secos”, disse ele. “Nossa demanda nos hospitais aumenta em 30 por cento na época de queimadas e aumenta cerca de 20 por cento a compra de medicamentos, insumos, equipamentos e inaladores”[60]. Há também um “aumento impressionante” no número de crianças e pessoas idosas que precisam de atendimento ambulatorial devido a problemas respiratórios. Embora a maioria seja tratada e retorne para casa, há muitas recaídas, pois continuam a sentir “os efeitos deletérios do aquecimento das queimadas, poeira, fumaça, fuligem. E acabam voltando, há muita recorrência. Voltam [em alguns casos] às vezes uma vez por semana."[61].
No município de Novo Aripuanã, a 20 horas de carro de Manaus, o secretário municipal de saúde disse que o aumento de pacientes com problemas respiratórios durante a temporada de queimadas representa um desafio para os recursos limitados do sistema de saúde local. “Nós temos um hospital que é bem básico, não tem UTI e nem respirador”, disse ele. Em casos graves, é preciso providenciar o transporte dos pacientes para Manaus, ou enviá-los de lancha, uma viagem de 12 horas[62].
Em 2019, o impacto das queimadas em partes do Amazonas foi particularmente agudo, levando o governo estadual a declarar estado de emergência na região metropolitana de Manaus e na região sul do estado[63]. As autoridades temem que o impacto na saúde pública possa ser pior em 2020 devido à pandemia de Covid-19. Em Novo Aripuanã, o secretário de saúde disse que as unidades locais já haviam atingido a capacidade total muito antes da temporada de queimadas devido à pandemia. O presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde no estado do Amazonas previu que “as queimadas seriam um agravante violentíssimo”[64].
Pará
Em Trairão, município na região noroeste do Pará, uma agente comunitária de saúde disse à Human Rights Watch que os problemas respiratórios são uma “constante” de julho a outubro devido às várias queimadas na região. “O médico passa antibiótico para melhorar, mas aí [o paciente] vai voltando”, disse ela, e alguns precisam ser transferidos para a cidade de Santarém, que fica a cinco horas de carro ao norte[65].
Nas regiões sul e sudeste do estado, onde o desmatamento e as queimadas são maiores, a fumaça durante a temporada de queimadas “lota” os serviços de saúde, segundo o presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde no estado do Pará, que já atuou como secretário de saúde em vários municípios da região. Uma das maiores procuras, disse ele, são de crianças que precisam de “inalação e hidratação”[66]. A fumaça também tem um impacto desproporcional nas pessoas idosas, disse ele, que temia que fosse muito pior este ano devido à Covid-19: “Com a pandemia, que atinge o pulmão, se torna uma combinação explosiva”[67].
Rondônia
Em agosto de 2019, a Secretaria de Estado da Saúde de Rondônia informou que diversos municípios haviam sido “tomados pela fumaça originada das queimadas” e que a resultante “poluição atmosférica” estava “colocando a vida de muitas pessoas
em risco”[68].
Um desses municípios era Cacoal, uma cidade de 80.000 habitantes a quase 500 quilômetros a sudeste da capital do estado, Porto Velho. Uma médica de família e comunidade que atende no sistema público de saúde disse à Human Rights Watch que a fumaça é um problema todos os anos durante a temporada de queimadas. “No pronto socorro infantil e na UBS aumenta a demanda [de atendimento] por indígenas, crianças e pessoas idosas”, afirmou. “A falta de ar, se aqueles pacientes já têm alguma doença respiratória, acaba exacerbando. Era um problema controlado com medicação e [que] piora com o clima e meio ambiente. Às vezes até precisam de internação para fazer
o tratamento”[69].
Em Porto Velho, o diretor adjunto de um hospital infantil disse à Human Rights Watch que as crianças com doenças preexistentes como asma, bronquite e rinite são as mais afetadas pela fumaça. “A patologia é mais grave conforme for menor a idade da criança”, disse ele. “Recém-nascidos prematuros, bebês que usaram aparelhos respiratórios, entre outros, são muito sensíveis a essas condições”[70]. O diretor, um pediatra com 30 anos de experiência, disse que ele e seus colegas estavam “muito preocupados” com a chegada da temporada de queimadas deste ano, pois o estado já estava lutando para lidar com a pandemia de Covid-19[71].
Um alergista do Hospital Regional de Cacoal expressou preocupação semelhante em relação à Covid-19. Os sintomas comuns observados entre as pessoas afetadas pela fumaça durante a temporada de queimadas incluem tosse, espirros e coriza, disse ele, o que aumenta o risco de propagação do vírus pelas pessoas que tenham contraído a Covid-19. Além disso, a temporada de queimadas aumenta a demanda por consultas ambulatoriais, mas esses serviços estão restritos desde o início da pandemia[72].
Povos indígenas
Povos indígenas sentem o impacto da temporada de queimadas na Amazônia de forma particular, já que ela afeta tanto a saúde quanto seus meios de subsistência. Em julho de 2020, terras indígenas registraram um aumento de 76,72 por cento nas detecções de focos de calor em relação ao mesmo mês no ano passado, segundo uma análise do Greenpeace com base em dados oficiais[73].
“Durante semanas, a fumaça cobre o céu”, disse o Dr. Fabio Tozzi, que coordena um projeto de atendimento de saúde a 15 mil indígenas e ribeirinhos que vivem às margens do rio Tapajós, no Pará. “É mais comum vermos quadros de falta de ar, alérgicos, bronquite e asma”[74]. A maioria dos impactos na saúde é subnotificado, disse ele.
Povos indígenas no Brasil são particularmente vulneráveis aos impactos da fumaça na saúde devido à alta prevalência de doenças respiratórias evitáveis[75]. Eles têm, por exemplo, três vezes mais chances de contrair tuberculose em relação à média nacional[76].
“A doença respiratória é uma das grandes causas de mortalidade em povos indígenas, particularmente entre crianças”, disse à Human Rights Watch a especialista em saúde indígena, médica e antropóloga Sofia Mendonça. Mendonça coordena o Projeto Xingu, programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Há 50 anos o programa atende povos indígenas do Alto Xingu, no norte do Mato Grosso, e realiza visitas às comunidades para avaliar a prevalência de doenças crônicas, inclusive tuberculose. “Em alguns povos, você vê pulmões de crianças – quando fazíamos busca ativa de tuberculose – deteriorados, que passaram por sucessivos processos inflamatórios”, disse ela[77].
Em algumas localidades, além do impacto da fumaça na saúde, o desmatamento ilegal e as queimadas provocadas por pessoas que invadem seus territórios são uma ameaça à segurança alimentar – essas atividades podem causar a destruição de plantações, produtos florestais e a caça de que dependem para subsistência, assim como a contaminação dos mananciais pelas cinzas[78]. O Dr. Tozzi descreveu como comunidades que atendia no Pará “começam a perder seus territórios de caça, pesca, coleta e plantações tradicionais” devido ao avanço das queimadas em seus territórios e a consequente introdução do agronegócio nessas áreas queimadas[79].
Um médico e antropólogo que trabalhou extensivamente com povos indígenas no Maranhão disse à Human Rights Watch que essas comunidades têm sua “qualidade de vida altamente prejudicada, não somente pelas doenças respiratórias [mas também pelo impacto] na qualidade da alimentação”[80]. A coordenadora de um Polo Base de Saúde Indígena no Maranhão lembrou a devastação provocada por uma queimada que atingiu a Terra Indígena Araribóia em 2015: “Primeiro vieram as doenças respiratórias porque a fumaça se espalhou por todas as aldeias.... Com muitos casos de pneumonia mesmo, porque se respirava fumaça dia e noite. Perdemos muitas casas. E depois o mais agravante: veio a desnutrição” devido à perda de cultivos e caça[81].
Por último, a invasão de seus territórios tradicionais também costuma ser acompanhada de violência contra indígenas. Um relatório do Ministério Público Federal, de maio de 2020, analisou 390 casos envolvendo ameaças e outros tipos de violência durante a última década e concluiu que os conflitos relacionados à disputa de terras e exploração de recursos naturais, incluindo madeira, são a principal causa de violência contra povos indígenas e outras comunidades tradicionais em risco[82].
III. Políticas Ambientais e de Saúde
Políticas Ambientais
A destruição acelerada da Amazônia brasileira é em grande parte impulsionada por redes criminosas que têm a capacidade logística para coordenar a exploração ilegal dos recursos naturais da floresta em larga escala, enquanto empregam homens armados para proteger seus interesses. Um relatório de 2019 da Human Rights Watch documentou como esses grupos ameaçam, atacam e às vezes até matam aqueles que se colocam em seu caminho. Suas atividades criminosas são facilitadas pelo fracasso do governo brasileiro em implementar suas leis ambientais de forma adequada, e em investigar e punir atos de violência contra os defensores da floresta no país.
Desde que o presidente Bolsonaro assumiu o cargo em 2019, a impunidade na Amazônia aumentou significativamente. O relatório da Human Rights Watch de 2019 documentou como a nova administração rapidamente tomou medidas para enfraquecer a principal agência de fiscalização ambiental do país, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), incluindo a exoneração da maioria dos superintendentes regionais, responsáveis pela aprovação de operações de combate à extração ilegal de madeira [83].
O governo também atuou de forma a minimizar as consequências enfrentadas por aqueles envolvidos em desmatamento ilegal e outros crimes ambientais. Em 2019, o IBAMA aplicou o menor número de multas por crimes ambientais em 24 anos[84]. Além disso, o governo estabeleceu que as multas ambientais deveriam ser revistas em “audiências de conciliação”. Um núcleo de conciliação ambiental pode oferecer descontos ou declarar nulo o auto de infração. Os novos procedimentos suspendem os prazos para pagamento da multa até que uma audiência de conciliação seja realizada[85]. Entre outubro de 2019, quando entraram em vigor os novos procedimentos, e maio de 2020, o IBAMA emitiu 5.500 multas, mas realizou apenas cinco destas audiências para validá-las – e os autuados nem sequer compareceram[86].
O governo Bolsonaro tem procurado enfraquecer restrições às áreas protegidas da floresta, onde muitas vezes ocorre o desmatamento ilegal e as queimadas. Esta administração chegou a propor uma medida provisória que poderia conceder títulos de propriedade a pessoas que ocuparam terras ilegalmente e um projeto de lei para abrir territórios indígenas para mineração e outras atividades comerciais[87]. O presidente também prometeu não demarcar “nem um centímetro a mais para terras indígenas”, apesar de a Constituição Federal obrigar o governo federal a demarcar essas áreas protegidas[88].
Essas mudanças de políticas foram acompanhadas de declarações abertamente hostis do presidente e de seus ministros em relação àqueles que defendem as florestas do país, incluindo órgãos de fiscalização ambiental e organizações não governamentais[89]. Ao mesmo tempo, o governo tem repetidas vezes sinalizado apoio aos responsáveis pelo desmatamento da Amazônia[90].
De acordo com as autoridades federais e locais, as evidências indicam que o aumento das queimadas em agosto de 2019 foi resultado de uma “ação orquestrada” preparada previamente por organizações criminosas envolvidas no desmatamento ilegal[91]. Mas, em vez de enfrentar essas redes criminosas, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, procurou minimizar o problema, alegando inicialmente que o tempo seco era responsável pelos fogos[92]. Em seguida, o presidente atacou ONGs ambientais brasileiras, chegando a acusá-las, sem provas, de estarem “por trás das queimadas” na tentativa de constranger o governo[93]. Além disso, diversas autoridades atacaram líderes de outros países, minimizando as preocupações internacionais sobre os danos causados à maior floresta tropical e um dos mais importantes reservatórios de carbono do mundo[94].
Em agosto de 2019, após um número crescente de líderes do setor empresarial brasileiro demonstrar preocupação de que a resposta do governo às queimadas estava prejudicando a imagem do país no exterior, o governo federal autorizou o emprego das Forças Armadas na Amazônia a fim de combater as queimadas[95].
Em fevereiro de 2020, o presidente editou um decreto criando um “Conselho Nacional da Amazônia Legal” com o objetivo de proteger a floresta[96]. O vice-presidente, um general da reserva do Exército, preside o Conselho e tem autoridade para tomar as decisões finais, colocando servidores ambientais experientes em papéis secundários[97]. Em maio, o governo federal autorizou o emprego de tropas para combater o desmatamento na Amazônia[98]. Posteriormente, em julho, o presidente estendeu a operação até novembro
de 2020[99].
Em meados de julho, o presidente editou outro decreto proibindo queimadas no Brasil por 120 dias, aparentemente em resposta a uma reunião realizada entre o vice-presidente e líderes do setor empresarial que cobraram uma melhor fiscalização ambiental na região da Amazônia[100].
O atual governo não articulou nenhum plano para resolver o problema subjacente que impulsiona o desmatamento e as queimadas subsequentes: o ambiente de quase total impunidade em que operam as redes criminosas na Amazônia, ainda que estas violem de forma flagrante as leis ambientais brasileiras e façam uso de violência e intimidação contra os defensores da floresta que tentam detê-las.
Políticas de Saúde
Padrões de Qualidade do Ar e Monitoramento
De acordo com a OMS, o principal esforço dos governos para proteger a saúde da poluição do ar pelas queimadas deve ser um programa de monitoramento da qualidade do ar eficaz e preciso, que meça os poluentes mais perigosos para a saúde, e que sirva de base para as medidas das autoridades de proteção às pessoas em risco[101]. O monitoramento deve ser feito de acordo com padrões de qualidade do ar predeterminados, para os quais a OMS fornece diretrizes[102].
Existem medidas básicas que as autoridades podem tomar para mitigar o impacto da poluição do ar causada pelas queimadas na saúde pública, de acordo com essas diretrizes. Quando a poluição atinge níveis perigosos, as autoridades podem emitir alertas recomendando que as pessoas permaneçam dentro de casa, reduzam a atividade física e usem máscaras para filtrar o ar que respiram. Podem ainda fechar ou reduzir atividades comerciais e escolas, e evacuar populações em risco para abrigos de emergência[103].
Embora o Brasil tenha atualizado recentemente seus padrões de qualidade do ar, o país ainda não apresenta uma rede nacional de monitoramento da qualidade do ar. A legislação federal atual também não estabelece prazos peremptórios para que os estados implementem os padrões de qualidade do ar que protegem a saúde, o que exigiria controle e redução adequada das emissões de poluição do ar. Os governos estaduais são ao final responsáveis pela gestão da qualidade do ar, mas sem prazos estabelecidos no âmbito federal estão sob pouca pressão para implementar sistemas de monitoramento para prevenir danos à saúde causados pela névoa tóxica das queimadas, ou para identificar episódios críticos de qualidade do ar e proteger grupos vulneráveis adequadamente.
Monitoramento da Qualidade do Ar
Há três décadas, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) – órgão consultivo e deliberativo que reúne representantes de diferentes esferas do governo, sociedade civil e setor empresarial – editou uma resolução que previa uma rede de monitoramento da qualidade do ar no Brasil[104]. Esta rede, contudo, ainda não foi implementada adequadamente.
Doze dos 27 estados brasileiros realizam algum tipo de monitoramento da qualidade do ar, embora nenhum deles esteja localizado na região amazônica, segundo informou o Ministério do Meio Ambiente à Human Rights Watch em resposta a um pedido pela Lei de Acesso à Informação[105]. Muitas das estações de monitoramento medem apenas um pequeno número de poluentes que são prejudiciais à saúde humana, de acordo com um relatório de uma organização de pesquisa em saúde, com base em dados coletados em parceria com o Ministério Público Federal[106].
No ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou um plano para criar uma rede nacional de monitoramento da qualidade do ar, com pelo menos uma estação em cada um dos estados brasileiros[107]. O Ministério do Meio Ambiente disse à Human Rights Watch, em julho de 2020, que estava conduzindo um processo de licitação para prover estações aos estados que ainda não monitoram os níveis de material particulado fino (PM 10 e PM 2,5), embora este seja apenas um dos vários poluentes que representam riscos graves para a saúde humana e que a OMS recomenda que as autoridades controlem[108].
Padrões de Qualidade do Ar
Em novembro de 2018, o CONAMA adotou uma resolução que atualizou os padrões de qualidade do ar no Brasil, buscando alinhar-se às diretrizes da OMS. No entanto, a resolução não estabeleceu prazos peremptórios para que as autoridades observem tais padrões e, portanto, reduzam a poluição do ar[109]. Por conta dessa omissão, representantes da sociedade civil e do Ministério da Saúde, então com assentos no CONAMA, votaram contra a resolução[110]. A Procuradoria-Geral da República contestou a constitucionalidade da resolução perante o Supremo Tribunal Federal, alegando “proteção insuficiente aos direitos à informação, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”[111].
Posteriormente, em maio de 2019, o presidente Bolsonaro e o ministro Ricardo Salles assinaram um decreto que modificou a composição do CONAMA, retirando o Ministério da Saúde do Conselho, bem como reduzindo a participação da sociedade civil[112].
Em um relatório de 2019, o Ministério da Saúde afirmou que a avaliação do impacto da poluição do ar na saúde era dificultada pela escassez de dados sobre a qualidade do ar em grande parte do país[113]. Cerca de duas décadas atrás, o ministério desenvolveu um programa de Vigilância em Saúde de Populações Expostas à Poluição Atmosférica (VIGIAR) para identificar os municípios de risco devido à poluição do ar. Desde 2016, no entanto, o programa está praticamente parado enquanto passa por reformulação, disseram autoridades de saúde federais à Human Rights Watch em julho[114]. Representantes do Ministério da Saúde descreveram planos para implementar novas diretrizes para avaliar os impactos na saúde em locais com muitas queimadas, bem como o treinamento de servidores da saúde[115]. Estes seriam passos positivos, mas são insuficientes para compensar a ausência de um sistema de monitoramento da qualidade do ar, como o próprio ministério já alertou.
Acesso à saúde na Amazônia brasileira
O acesso à saúde na Amazônia brasileira – principalmente a serviços de alta complexidade, como internações e consultas com determinados especialistas – é altamente concentrado nas grandes cidades[116]. A distribuição desigual dos serviços de saúde limita o acesso a cuidados para pessoas que sofrem os impactos das queimadas e que podem não conseguir deslocar-se de sua casa até um hospital. Enquanto a distância média nacional para acessar serviços de alta complexidade é de 155 quilômetros, para alguns estados da Amazônia ela ultrapassa 400 quilômetros[117].
Para comunidades rurais, a distribuição desigual da infraestrutura de saúde também significa que o acesso a cuidados pode limitar-se a pequenos postos de saúde. Quando os pacientes necessitam de atendimento especializado pela exposição à fumaça das queimadas, os médicos podem precisar solicitar uma transferência para as capitais dos estados por meio de avião ou barco, disseram algumas autoridades e profissionais de saúde à Human Rights Watch. Este processo pode ser demorado, caro e retardar o acesso a cuidados necessários para os pacientes[118].
O Efeito Covid-19
Em 14 de agosto, o Brasil tinha mais de 3 milhões de casos confirmados de Covid-19 e quase 106.000 mortes, o segundo país com os maiores números, atrás apenas dos Estados Unidos[119]. A região da Amazônia, no norte do país, sofreu desproporcionalmente: 64,5 por cento dos pacientes hospitalizados com Covid-19 na região norte morreram, contra 40,8 por cento na região centro-sul, de acordo com um estudo recente[120].
Autoridades e profissionais da saúde expressaram de forma reiterada preocupação de que a sobrecarga da infraestrutura de saúde da região amazônica, já pressionada pelas demandas da pandemia de Covid-19, dificulte o atendimento a pacientes impactados pelas queimadas[121]. Pessoas com doenças respiratórias em decorrência das queimadas também podem enfrentar o risco adicional de contrair o vírus ao percorrerem longas distâncias para ter acesso a cuidados de alta complexidade, como os residentes da região amazônica muitas vezes precisam fazer.
A Covid-19 também torna ainda mais urgente os esforços para reduzir as queimadas, visto que algumas das pessoas mais afetadas pela fumaça – pessoas idosas e pessoas com doenças cardíacas e pulmonares preexistentes – também são grupos de alto risco se contraírem o vírus.
Em entrevista à Human Rights Watch, o Dr. Aaron Bernstein, diretor interino do Centro para Clima, Saúde e Meio Ambiente Global da Escola de Saúde Pública T.H. Chan da Universidade Harvard, disse que a poluição do ar pelas queimadas pode levar a sintomas mais graves ou ao aumento de mortes entre aqueles com Covid-19. “Há evidências de que, mesmo em curto prazo, a exposição à má qualidade do ar [como a causada pela fumaça das queimadas] pode nos tornar vulneráveis a infecções respiratórias”, disse Bernstein[122]. Autoridades do governo em outros países proibiram a queima a céu aberto a fim de proteger a saúde respiratória, citando preocupações semelhantes[123].
Dado o enorme tamanho do Brasil, os especialistas têm dificuldades para prever quando a epidemia atingirá o “pico” e as estimativas variam de estado para estado[124]. No entanto, no final de junho de 2020, a diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) estimou que o número de mortes por Covid-19 poderia chegar ao pico em agosto, caso o país não melhorasse sua resposta à pandemia, coincidindo com o pico de atividade de fogo na região conforme ocorreu no ano passado[125].
O governo federal dificultou respostas eficazes à pandemia Covid-19 em diversas ocasiões, inclusive por meio de declarações públicas de Bolsonaro. “O problema é que o Brasil tem um presidente que basicamente não acredita na ciência e minimizou os riscos do vírus”, resumiu Márcia Castro, professora de Harvard e especialista brasileira em saúde pública[126]. O governo federal tentou impedir os governos estaduais de impor regras de distanciamento social e tentou ocultar os dados da Covid-19 do público[127]. Em abril, o presidente também demitiu seu ministro da Saúde por defender as recomendações da OMS para combater o vírus e levou seu substituto a deixar o cargo em maio[128]. Um general da ativa e sem experiência em saúde pública era o ministro da saúde em exercício no momento da redação do relatório[129].
IV. Obrigações de Direitos Humanos do Brasil
Direito à Saúde
A Constituição Federal obriga o Estado a garantir o direito à saúde para todos os cidadãos “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”[130].
O direito ao mais alto padrão possível de saúde também está consagrado em vários tratados internacionais vinculantes para o Brasil, incluindo o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC)[131]. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas também destaca que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar”[132].
O direito à saúde vai além do acesso a cuidados médicos e abrange determinantes básicos da saúde, como as condições ambientais[133]. O acesso a ar limpo, por exemplo, é necessário para o gozo do direito à saúde e do direito à vida.
O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU – que interpreta e monitora o cumprimento do PIDESC – declarou que os governos devem adotar medidas contra as ameaças à saúde ambiental, inclusive implementando políticas destinadas a eliminar a poluição do ar[134]. Os Estados também têm a obrigação de fornecer “informações relativas aos principais problemas de saúde na comunidade, incluindo métodos de prevenção e controle”, declarou o Comitê[135].
O Brasil tem a obrigação de proteger o direito ao mais alto padrão possível de saúde dos povos indígenas, de maneira não discriminatória, e possui diversas obrigações de tratado que demandam desenvolver ações coordenadas e sistêmicas, com consulta aos povos indígenas, para proteger seus direitos, incluindo o direito à saúde[136].
Direito a um meio ambiente saudável
A Constituição Federal reconhece a proteção ao direito a um meio ambiente saudável, prevendo que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”[137].
O Brasil também é parte de tratados internacionais que obrigam o Estado a proteger o direito a um meio ambiente saudável, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [138]. Uma decisão recente da Corte Interamericana de Direitos Humanos confirmou que a Convenção Americana inclui o direito a um meio ambiente saudável e destacou a indivisibilidade e interdependência entre o direito a um meio ambiente saudável e outros direitos, incluindo direitos civis e políticos, observando que “um meio ambiente saudável é um direito fundamental para a existência da humanidade”[139].
A Corte afirmou que o direito a um meio ambiente saudável é autônomo e protege os componentes do meio ambiente, como florestas, rios e mares. Portanto, por mais que o direito a um meio ambiente saudável esteja conectado a outros direitos, seu conteúdo autônomo significa que a falha do Estado em fazer cumprir suas leis, levando à destruição ilegal de florestas, pode causar violações do direito a um meio ambiente saudável e sustentável[140].
Mais recentemente, em 2018, o relator especial da ONU sobre direitos humanos e meio ambiente elaborou um conjunto de Princípios Orientadores sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente que dispõem as obrigações básicas dos Estados, incluindo “estabelecer, manter e implementar parâmetros legal e institucional eficazes para o desfrute de um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável”[141].
Como parte da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, o Brasil se comprometeu, entre outras medidas, a “adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam”[142]. Também endossou a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, reconhecendo que é necessário “estabelecer e executar programas de assistência aos povos indígenas para assegurar [a] conservação e proteção [do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos], sem discriminação”[143].
Obrigação de Direitos Humanos de Mitigar a Mudança Climática
Todos os governos, como um elemento de sua obrigação de direitos humanos em respeitar, proteger e realizar os direitos humanos sob o direito internacional, incluindo os direitos à vida, à saúde e o direito a um meio ambiente saudável, têm obrigações de mitigar as mudanças climáticas antropogênicas.
Em 2018, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU emitiu uma declaração sobre mudanças climáticas, aconselhando os estados signatários do PIDESC, incluindo o Brasil, que o fracasso em prevenir danos previsíveis causados pelas mudanças climáticas ou em “mobilizar o máximo de recursos disponíveis como um esforço para fazê-lo, pode constituir uma violação da obrigação [de respeitar, proteger e realizar todos os direitos humanos para todos]”[144].
O Comitê de Direitos Humanos da ONU, que supervisiona a implementação e fornece interpretações oficiais do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), do qual o Brasil é parte, declarou que cumprir a obrigação de respeitar e proteger o direito à vida exige que os governos cumpram medidas “para preservar o meio ambiente e protegê-lo contra danos, poluição e mudanças climáticas causados por atores públicos e privados”[145].
O Brasil aderiu ao Acordo de Paris sobre Mudanças do Clima, adotado em 2015 no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que estabeleceu compromissos e mecanismos concretos de mitigação, adaptação e cooperação climática. O acordo visa a fortalecer a resposta global à mudança climática, incluindo “manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais”[146].
Sob o Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu, em 2016, a erradicar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030. O Brasil também se comprometeu a atingir essa meta “com pleno respeito aos direitos humanos, em particular os direitos das comunidades vulneráveis [e] das populações indígenas”[147].
Recomendações
O Brasil deveria adotar medidas urgentes para fortalecer a fiscalização ambiental na floresta amazônica como parte de sua obrigação de direitos humanos de proteger o direito à saúde e o direito a um meio ambiente saudável, e de mitigar mudanças climáticas antropogênicas.
- O governo federal deveria adotar medidas eficazes para reduzir significativamente o desmatamento geral e o desmatamento ilegal, de acordo com os compromissos do Brasil no âmbito do Acordo de Paris sobre Mudanças do Clima e sua Política Nacional sobre Mudanças do Clima, conforme definidos nos Decretos nº 7.390/2010 e nº 9.578/2018.
- O governo federal deveria garantir que os agentes ambientais tenham autonomia, ferramentas e recursos suficientes para cumprir o seu mandato com segurança e eficácia.
- O governo federal deveria restabelecer a colaboração entre as agências federais e grupos da sociedade civil que trabalham para proteger os defensores da floresta, os direitos dos povos indígenas e o meio ambiente, incluindo a manutenção de canais diretos de comunicação com as comunidades e indivíduos defensores da floresta, para que esses possam denunciar com segurança o desmatamento ilegal e atos de violência ou intimidação.
O Brasil deveria adotar medidas urgentes para proteger a saúde, desenvolvendo mecanismos eficazes que garantam a qualidade do ar de acordo com os padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
- O governo federal deveria garantir que os estados implementem um sistema adequado de monitoramento da qualidade do ar, de acordo com a Resolução CONAMA nº 05/1989, inclusive fornecendo financiamento e assistência técnica quando necessário. O sistema deve monitorar todos os poluentes para os quais o Brasil adotou valores de referência por meio da Resolução CONAMA nº 491/2018 e tornar públicos os resultados do monitoramento da qualidade do ar em tempo hábil.
- O governo federal deveria adotar um plano de ação nacional abrangente para reduzir a poluição do ar, alinhado com as metas intermediárias e os padrões de qualidade do ar definidos na Resolução CONAMA nº 491/2018, e implementar e medir o progresso em colaboração com os estados. Paralelamente, o CONAMA deveria adotar uma resolução que estabeleça prazos obrigatórios para que os estados estejam em conformidade com os padrões de qualidade do ar adotados em 2018.
- As autoridades ambientais e de saúde deveriam cooperar nos âmbitos estadual e federal para implementar planos que estabeleçam medidas preventivas e responsivas para proteger a saúde quando a poluição do ar ultrapassar os padrões de qualidade do ar. Esses planos devem dar atenção especial aos grupos vulneráveis e incluir a disseminação de informações ao público sobre os riscos da poluição do ar para a saúde e as medidas que podem ser adotadas para proteger sua saúde.
- Autoridades de saúde nas esferas estadual, federal e municipal deveriam colaborar para fortalecer o programa de Vigilância em Saúde de Populações Expostas à Poluição Atmosférica (Vigiar) a fim monitorar de forma eficaz os impactos da exposição à poluição do ar na saúde da população – inclusive de queimadas –e identificar municípios de risco para medidas preventivas e responsivas de proteção à saúde. As medidas para fortalecer o VIGIAR poderiam incluir recursos financeiros e humanos adequados para o programa cumprir seu mandato, e orientação operacional para o programa identificar municípios de risco.
- O governo federal deveria garantir a contínua participação do Ministério da Saúde e da sociedade civil na formulação de políticas de saúde ambiental, inclusive por meio da revisão do Decreto nº 9.806/2019 e assegurando o assento do Ministério da Saúde no CONAMA.
O Brasil deveria adotar medidas urgentes para garantir a responsabilização por atos de violência relacionados ao desmatamento ilegal e às queimadas na Amazônia, bem como para apoiar e proteger os defensores da floresta.
- O Ministro da Justiça deveria convocar autoridades federais e estaduais, incluindo os Ministérios Públicos estaduais e federal, forças policiais e agências ambientais, para elaborar e implementar um plano de ação, com significativa participação da sociedade civil, para enfrentamento dos atos de violência e intimidação contra defensores da floresta e para desmantelar as redes criminosas envolvidas no desmatamento ilegal na Amazônia.
- O Congresso Nacional deveria criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e realizar audiências públicas sobre as redes criminosas responsáveis pelo desmatamento ilegal e os atos de violência e intimidação contra defensores da floresta na Amazônia.
Agradecimentos
Este relatório é fruto de uma colaboração entre o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e a Human Rights Watch.
André Albuquerque Sant’Anna, professor visitante da Universidade Federal Fluminense e consultor do IEPS, conduziu o estudo estatístico que estima o número de internações hospitalares em excesso atribuíveis a queimadas associadas ao desmatamento, sob a supervisão de Rudi Rocha, Coordenador de Pesquisa. O estudo estatístico e sua metodologia estão disponíveis na íntegra no site do IEPS aqui.
Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM, analisou os dados oficiais do governo sobre desmatamento e queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e produziu a análise geoespacial apresentada neste relatório, em parceria com a equipe de análise geoespacial da Human Rights Watch.
Luciana Téllez-Chávez, pesquisadora da divisão de Meio Ambiente e Direitos Humanos, e Andrea Carvalho, pesquisadora assistente sênior das divisões de Meio Ambiente e Direitos Humanos e de Américas, conduziram as entrevistas e analisaram políticas governamentais relevantes, bem como pesquisas científicas reconhecidas sobre os impactos da fumaça da queima de biomassa na saúde. Luciana e Andrea escreveram este relatório.
No IPAM, o relatório foi analisado por André Guimarães, diretor executivo; Ane Alencar, diretora de Ciência; e Paulo Moutinho, pesquisador sênior. No IEPS, foi revisto por Miguel Lago, diretor executivo.
Na Human Rights Watch, o relatório foi revisado por Daniel Wilkinson, diretor da divisão de Meio Ambiente e Direitos Humanos; Felix Horne, pesquisador sênior da divisão de Meio Ambiente e Direitos Humanos; Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil; César Muñoz, pesquisador sênior da divisão de Américas no Brasil; Josh Lyons, diretor de Análise Geoespacial; Carolina Jordá Álvarez, analista Geoespacial; Bryan Root, analista quantitativo sênior; Juliana Nnoko-Mewanu, pesquisadora da divisão de Direitos da Mulher; Margaret Wurth, pesquisadora sênior da divisão de Direitos da Criança; Bethany Brown, pesquisadora da divisão de Direitos das Pessoas com Deficiência; e Joseph Amon, consultor de saúde e direitos humanos. Maria McFarland Sánchez-Moreno e Aisling Reidy, conselheiras jurídicas seniores, e Babatunde Olugboji, vice-diretor de Programas, forneceram revisões jurídicas e programáticas para a Human Rights Watch.
Também gostaríamos de agradecer por seus comentários à Dra. Evangelina Vormittag, presidente do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS), que trabalha extensivamente para proteger a saúde por meio da defesa da qualidade do ar no Brasil, e à Dra. Sofia Mendonça, especialista em saúde indígena, médica e antropóloga que coordena o Projeto Xingu, programa de extensão universitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, que atende há 50 anos os povos indígenas do Alto Xingu, no norte do Mato Grosso.
O relatório foi preparado para publicação por Travis Carr, coordenadora de publicações; Fitzroy Hepkins, gerente administrativo; e José Martínez, coordenador sênior de administração da Human Rights Watch. Cara Schulte, assistente da Divisão de Meio Ambiente e Direitos Humanos da Human Rights Watch, forneceu assistência e apoio à produção.
Gostaríamos de agradecer aos colegas de outras organizações sem fins lucrativos, funcionários do governo e do judiciário, pesquisadores, especialistas e ativistas que forneceram informações para este relatório. Também somos profundamente gratos a todos os corajosos profissionais da saúde trabalhando na linha de frente e que dedicaram seu tempo para fornecer comentários para este relatório em meio à pandemia de Covid-19.